quarta-feira, 8 de junho de 2011


O mundo tem remédio?
Tem sim, senhor
E galinha toma Rivotril?
Antibiótico para vaca?
Vim buscar um iodo para evitar câncer, que nem que lá no Japão.
Vencemos, tudo ao mesmo tempo, agora. Fechamos o primeiro ciclo da Pesquisa Qualitativa em 33 municípios de Minas Gerais. Grotões. Sertões mesmo (veja a lista completa no blog do projeto). Êta que Minas são muitas mesmo!
Em uns lugares, para chegar, só de balsa. Outros, de tão longe, melhor ir de avião para Brasília e, de lá, pegar um ônibus velho; mais adiante, esperar 4 horas, no trevo, para acabar a viagem. Mas não abrimos mão de um único município que foi sorteado: é o tal do aleatório estratificado por regiões. Persistência metodológica é isso!
Minas Gerais, um mar de município, cercado de montanha por todos os lados. Diz um amigo meu que mineiro gosta de duas coisas: “pão de queijo e de município”.
Uma média de quatro entrevistas individuais em profundidade em cada uma das unidades de saúde visitadas. Todas integrantes do Programa Farmácia de Minas e com, pelo menos, uma equipe de Saúde da Família. Todos até dez mil habitantes.
Em tantos quantos foi possível, realizamos Grupo Focal com os integrantes das Equipes de Saúde. Cerca de 10.
Um material muito rico, cheio de contradições. Um mosaico. Uma amostra, uma colherada na sopa do que é hoje o SUS pelo País afora.
Foi um trabalho em equipe: quatro pesquisadoras de campo, que chamamos consultoras terapêuticas. Um consultor científico. Um coordenador. Todos farmacêuticos. E um gerente de comunicação, este que vos fala.  
Foram meses de preparação. Leituras. Oficinas. Palestras. Debates, quebra-pau mesmo. Foi bom demais: firmou nossa têmpera.
Bom, agora, vamos aos resultados.
O que escrevi no início deste texto não é inventado, está tudo comigo, nos relatórios das pesquisas. Nesse momento, estou trabalhando na sistematização deles. Cabe-me fazer uma costura de todo material, juntar, articular, apontar o específico. Um trabalho braçal, 33 textos ao todo que precisam virar unzinho apenas.   
Tem gente dando Rivrotril para a galinha porque a bichinha está “muito agitada”. O outro foi ao centro de saúde buscar antibiótico para a sua vaca, “está com problema, doutor”.
Na segunda-feira seguinte ao “Fantástico”, depois que a Globo sugeriu que a prevenção para o câncer estava no iodo que os japoneses tomam por conta da radiação de Fukushima, teve fila em unidade de saúde. “Vim buscar o meu.” E quem não quer, um iodozinho de nada, findo o câncer!
E outros achados. É médico que vai a unidade de saúde duas vezes por semana, trabalha de 7h às 8h e ganha dez paus. Isto mesmo: 8h de trabalho por mês!
Vimos receitas azuis serem preenchidas, à farta, pelos Agentes Comunitários de Saúde.  “Isso é em todo lugar.”O médico só assina. Tá que nem político: nem sabia o que assinei. “Zaz, já assinei. Vou nessa, porque tenho mais dez paus para faturar noutro lugarejo.“
E aí vem o escândalo do CNES (Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde). O governo está recadastrando todo mundo por conta desses fraudadores. Porque vimos médicos que vão para o interior é para comprar fazenda e engordar gado no pasto. Para o gado deles não deve faltar antibiótico!
Tem mais, tem muito mais. Em várias unidades, os profissionais declaravam-se felizes, porque era a primeira vez que se reuniam, provocados pela nossa iniciativa. “Uai, mas vocês não falam de boca cheia da ‘equipe de saúde’”. Que nada!
No meio dessa mixórdia, benzodiazepínido voando para todo lado. Um caboclo toma ao todo 18 medicamentos diferentes! Usuário que tem a sua receita de anti-depressivo repetida por 14 anos.
Claro que tem gente comprometida. Claro que há equipes que, aos poucos, conseguem avançar. Muita luta. Dedicação. Vão viver lá naqueles grotões. Gente que estudou, num lugar que não tem nada para se fazer. A não ser falar da vida alheia.
Lembrei-me de outro caso: o exame de Aids é entregue pela mulher do paciente, aos prantos, para o médico. “Doutor, nem eu abri o exame, e a cidade inteira já sabe que o meu marido está com Aids.”
Coisas que nos mostram como funciona a vida nesses pequenos microcosmos sociais e políticos. Uma terra em que o vereador, o prefeito, o Zé e o Mané, estão à toa, ali, esperando uma encrenca, fazer uma fofoca, prontos para criar um boato.
E aí o usuário entra na unidade de saúde, ameaçando, “se não me derem o remédio, trago o vereador”.  E trazem mesmo, os desocupados arrumam um escarcéu. Daí que a equipe vive sob essa pressão constante. A política no interior, nesses grotões, funciona assim mesmo: “Zé é de cá, Mané de lá”. Acabou conversa.
De todo o sacolejo, o que fica para o meu projeto é algo que estou assimilando e vem mudar a minha proposta inicial.  
Antes de trombar com esse mundão, pensava de forma mais fria, racionalista: vou estudar os fluxos de comunicação que atuam, influenciando, construindo, a cultura da prescrição de medicamentos. Ou seja, o foco no prescritor (médico, dentista, enfermeiro).
Bacana. Temos um rico material a esse respeito. Já conseguimos compor perfis. Confirmamos mais do que tivemos surpresas. Os médicos novos são “internófilos”. Os mais antigos, “Défilos”, de DEF (Dicionário de Especialidades Farmacêuticas). A grande, a imensa maioria, não utiliza os protocolos terapêuticos oficiais. Como técnica perceptiva, decidimos mostrá-los, ao vivo e a cores, para ver a reação, desmascarar os que mentem.
Legal, mas uma coisa muito mais rica se descortinou. Algo está fervendo por debaixo dessa enxurrada química que nos assola. Encontramos como um dos padrões mais recorrentes a indicação de que o usuário entra na consultório dizendo o que quer, exame, remédio, tudinho. E ai do médico se não der. “Chamo o vereador.”
Mexidas simbólicas, nas relações de poder. Na apropriação e utilização da informação que pulula, aos borbotões, da net, da mídia, da “vizinhoterapia”. E o interior, prova a nossa pesquisa, não está fora, muito antes pelo contrário, afundado até o pescoço nessa maré globalizante da tecnologia.
Daí que, conversando outro dia com a Ju e o Igor, vem a idéia de escolher uma ou duas cidades e retornar, agora para pesquisar apenas o usuário. Abrir a pesquisa para a cultura, para o mundo da vida, para esse pulsar.
Paro por aqui. É muito o que pensar. Já iniciei as conversas com o Professor Valdir e ele vê que essa linha do usuário, citando o “mercado simbólico” e a Professora Inesita, são muito profícuos. Mas e aí? Conseguirei incorporar as duas linhas de pesquisa no meu trabalho?  Espero ter essas respostas em breve.  

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