quinta-feira, 5 de maio de 2011

FADO TROPICAL Chico Buarque

Fado Tropical

Chico Buarque

Composição : Chico Buarque/ Ruy Guerra
Oh, musa do meu fado,
Oh, minha mãe gentil,
Te deixo consternado
No primeiro abril,
Mas não sê tão ingrata!
Não esquece quem te amou
E em tua densa mata
Se perdeu e se encontrou.
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal:
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal!
"Sabe, no fundo eu sou um sentimental. Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo ( além da sífilis, é claro). Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar, o meu coração fecha os olhos e sinceramente chora..."
Com avencas na caatinga,
Alecrins no canavial,
Licores na moringa:
Um vinho tropical.
E a linda mulata
Com rendas do alentejo
De quem numa bravata
Arrebata um beijo...
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal:
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal!
"Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos o golpe duro e presto,
De tal maneira que, depois de feito,
Desencontrado, eu mesmo me contesto.
Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto
E se o meu coração nas mãos estreito,
Me assombra a súbita impressão de incesto.
Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadora à proa,
Mas meu peito se desabotoa.
E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa,
Pois que senão o coração perdoa".
Guitarras e sanfonas,
Jasmins, coqueiros, fontes,
Sardinhas, mandioca
Num suave azulejo
E o rio Amazonas
Que corre trás-os-montes
E numa pororoca
Deságua no Tejo...
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal:
Ainda vai tornar-se um império colonial!
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal:
Ainda vai tornar-se um império colonial!

Contribuições da Antropologia para Pensar e Fazer Saúde


PPGICS - Turma 2011 Fundamentos Teóricos da Informação e Comunicação em Saúde - 1º semestre 2011
Professores: Regina Maria Marteleto / Inesita Soares de Araújo / Valdir de Castro Oliveira
Aluno: César Augusto Luz
Fichamento 1 - 14 de abril de 2011
Contribuições da Antropologia para Pensar e Fazer Saúde
MINAYO, Maria Cecília de Souza. Contribuições da antropologia para pensar e fazer saúde. In: CAMPOS, Gastão Wagner de Sousa et al. (Orgs.). Tratado de saúde coletiva. 2. ed. São Paulo: HUCITEC; Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2009. p. 189-218.
Resumo: A autora discute as contribuições da antropologia para os estudos da saúde no Brasil e as dificuldades recíprocas que marcam essa aproximação. Apresenta a  produção acadêmica brasileira contextualizada no espaço internacional, as suas principais contribuições e questões diante do panorama atual, propondo, ainda, uma classificação para a produção acadêmica brasileira.

A autora parte de duas indagações para percorrer um caminho entre as principais contribuições da antropologia clássica para a construção das categorias saúde-doença.

              Como fazer para que as disciplinas clínicas que lidam com pessoas doentes, pretendendo achar soluções para as causas de seu sofrimento físico, integrem o fato de a essência da pessoa humana ir muito além do seu corpo biológico – sendo ela um ser que pensa, imagina, simboliza, vive de afetos e de fantasmas quanto de alimentos materiais? Como fazer com que aqueles especialistas cuja atuação se dirige aos indivíduos – seja para curá-los, seja para educá-los – admitam o fato de cada pessoa ser inserida em redes, estruturas, formas de pensamento coletivas que até certo ponto marcam e orientam e orientam o seu pensamento?
- RAYNAUT, 2002, P. 43.

O seu percurso parte do início da antropologia clássica, no final do século XIX. Por meio de autores como Radclife-Brown, Lévi-Strauss e Marcel Mauss,  nos conduz pelos caminhos das pesquisas antropológicas que tanto estabeleceram as bases um potencial universal do ser humano para produzir e refletir sobre sua realidade quanto situaram a compreensão dos fenômenos culturais. As operações mentais que geram o pensamento mítico, nessa história da antropologia clássica, não são menos complexas do que aquelas que engendram o pensamento científico, segundo Lévi-Strauss.
A seguir, a autora relaciona cinco grandes contribuições da antropologia clássica para pensarmos saúde/doença:
1.       A antropologia contribui para relativizar conceitos biomédicos
2.       A antropologia contribui para desvendar a estrutura dos mecanismos terapêuticos
3.       A antropologia contribui para mostrar relações entre saúde/doença e realidade social
4.       A antropologia contribui para a contextualização dos sujeitos
5.       A antropologia contribui com forma de abordagem dos processos de saúde/doença
A meu ver, um dos mais profícuos conceitos apresentados diz respeito a como, numa abordagem concreta,  a intersubjetividade deve ser tomada como elemento central na relação entre o  profissional de saúde e o paciente. Somente essa visão é capaz de dar conta do desafio de abarcar o universo social, cultural e simbólico que cerca a relação saúde/doença, numa relação influência recíproca entre os seus dois universos.
Uma outra discussão abordada pela autora diz respeito às dificuldades da relação entre a antropologia e a área da saúde, num contexto de fortalecimento de uma visão “biomédica” hegemônica que nega a questão social. Um projeto utópico da saúde perfeita, segundo Lucien Sfez (1997), resulta numa redefinição da saúde pública como “a soma das saúdes individuais perfeitamente equilibradas pelo poder tecnológico”, conforme nos expõe a autora.
Na sua busca de compreender como a dificuldade dessa relação da antropologia com a área da saúde chega até ao núcleo da produção dos próprios antropólogos, questão sintetizada numa segunda a crucial pergunta do mesmo autor citado por Cecília Minayo.
Como conseguir que as ciências psicológicas e sociais admitam que o ser humano não é constituído somente de um espírito, mas também de um corpo. Como conseguir que elas admitam que também as sociedades humanas não podem ser analisadas apenas em sua dimensão cultural, levando unicamente em conta suas representações, seus modelos de comportamento, o modo cmo elas organizam as relações entre seus membros? Como conseguir que as ciências humanas integrem essa evidência de que os sistemas sociais só existem porque se arraigam em uma realidade biológica: a dos corpos e a dos membros? (Raynaut, 2002, pp.43-4).
Essa dicotomia será resolvida numa aproximação “colaborativa” entre as duas matrizes de pensamento, a partir do entendimento de que a área da saúde é campo “pluridisciplinar” , em que sempre serão possíveis relações entre o paradigma médico e a antropologia.
Por fim, a autora situa a antropologia da saúde no Brasil contexto internacional, diferenciando-a historicamente da “antropologia médica”, que vem da tradição de pesquisa anglo-saxônica. Um pouco mais adiante, é de se notar que a autora aponta uma convergência entre a produção europeia e a norte-americana na antropologia da saúde, esta última marcada, na sua trajetória, por uma vertente mais funcionalista, em diferenciação aos autores clássicos com os quais abre o seu artigo.
Após uma breve análise das características mais marcantes da produção latino-americana – que se inicia na década de 1920 do século passado -, Minayo nos mostra como que os desafios epidemiológicos, demográficos situados na implementação dos marcos do sanitarismo brasileiro estão contribuindo para acelerar a marcha da produção antropológica da saúde no Brasil, distinguindo as suas principais contribuições no cenário recente em que a Estratégia Saúde da Família bem pode consubstanciar o esforço – lento, como aponta – dos gestores públicos em responder aos enormes desafios colocados.
A diversidade da produção da antropologia da saúde no Brasil será classificada por ela em quatro nichos ou movimentos, em permanente interação: antropologia stricto sensu, pesquisa estratégica, abordagens interdisciplinares e os estudos qualitativos, realizados por profissionais que não são antropólogos.
Todos eles expressivos e numa dinâmica muito intensa, configurando um conjunto de contribuições que a autora classifica como “dinâmica e florescente”. Esse encontro do paradigma biomédico e da antropologia, nos mostra a autora, amplia as bases conceituais da práxis da saúde e, ao incluir a antropologia como um de seus elementos constitutivos, as ciências da saúde não se tornam menos científicas, mas, ao contrário, “aproximam-se com maior abrangência e profundidade dos contornos reais dos fenômenos que abarcam.”


A vida dos homens infames


PPGICS - Turma 2011
Fundamentos Teóricos da Saúde, Ciência e Tecnologia - 1º semestre 2011
Professores:
Dra.Maria Cristina Guimarães
Dr. Carlos Eduardo Estellita Lins
Dr. José Carvalho Noronha
Aluno: César Augusto Luz
Resenha Acadêmica Crítica 1 – 25 de abril de 2011
A vida dos homens infames
FOUCAULT, M. (2003) A vida dos homens infames. In: ______. Estratégia, poder-saber. Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p.203-222.
Resumo: A obra de Michel Foucault* discute, a partir da compilação de pequenas petições, exumadas dos arquivos do internamento do Hospital Geral e da Bastilha, relativos ao período que compreende os anos de 1660 a 1760, uma espécie peculiar de formação discursiva que se articula em torno dos mecanismos da disciplina, do castigo, da prisão e da repressão e que operam na França absolutista dos séculos XVII e XVIII. Os documentos, tomados como monumentos, revelam, em si, como os sujeitos produzem e reproduzem discursos do poder, eles próprios integrantes de dispositivos estratégicos mais amplos que se situam na conformação histórica da sociedade burguesa, no leito de um fluxo que vem das práticas confessionais cristãs e deságua nas relações da sociedade moderna, apontando, ainda, conexões entre a literatura e a psicanálise, que dialogam fortemente com essa tradição discursiva.

(*) Consideramos como premissa metodológica básica para elaborarmos essa resenha, conhecermos o pensamento de Michel Foucault, mesmo que de forma rudimentar. Após a leitura do texto do autor francês, fomos buscar no Vocabulário de Edgardo Castro uma seleção de conceitos que nos apoiasse como um “mapa” e, ao mesmo tempo, uma “bússola”. Acreditamos que a nossa proposta metodológica, por mais elementar que seja, brindou-nos com possibilidades muito ricas, pois que situou o texto em foco numa linha histórica, dialogando com conceitos-chave para a compreensão das idéias do autor.

Propus-me a saber por que, de repente, tinha sido tão importante em uma sociedade como a nossa que um monge escandaloso ou agiota extravagante e inconseqüente fossem “sufocados” (como se sufoca um grito, um fogo ou um animal); procurei saber a razão pela qual se quis impedir com tanto zelo os pobres espíritos de passearem pelas estradas desconhecidas.
- FOUCAULT, 2003, P.13
A arqueologia de Michel Foucault, entendida como a “história das condições históricas da condição de saber” (CASTRO, Edgardo, El vocabulário de Michel Foucault. Um recorrido alfabético por sus temas, conceptos y autores) depara-se com acontecimentos discursivos que irão, efetivamente, desnudar a experiência “da ordem e dos seus modos de ser”. Documentos, “monumentos” em si, que não serão tratados como “signos de outro”, senão, como reveladores mesmo de uma prática específica.
Tal arqueologia, vigorosa e seminal, atuará perante o “arquivo”, tomado como a “lei do que pode ser dito, um sistema que rege a aparição dos enunciados como acontecimentos singulares” (idem). E são essas “experiências-relâmpago”, “poemas-vida” que nos permitirão ver e quase tocar os mortos, no seu encontro “instantâneo” com o poder.  Enfim, infames, desordeiros, vilipendiados de toda (des)ordem serão os protagonistas dessa exumação dos “sofrimentos, malvadezas, ciúmes e vociferações”. 
“Essas vidas, por que não ir escutá-las, lá onde, por elas próprias, elas falam?”
O ponto mais intenso das vidas, aquele em que concentra sua energia, é bem ali onde elas se chocam com o poder, se debatem com ele, tentam utilizar suas forças ou escapar de suas armadilhas.
- FOUCAULT, 2003, P.16
E ao selecioná-las, exumá-las do túmulo silencioso e frio em que se achavam, Focault utiliza alguns critérios bem simples, renunciando a análises ou “rudimentos” de explicação: que fossem curtas, obscuras e desventuradas, de personagens reais, que nos despertassem beleza e terror, por meio do relato de suas desgraças, de sua raiva ou de incerta loucura. Que mantivessem, ainda, o maior número possível de relações com a realidade; “não somente que a ela se referissem, mas que nela operassem”(grifo nosso).
Mesmo que, de fato, despretensiosa, tais critérios mostrar-se-ão, como poderemos ver, absolutamente fundamentais para os objetivos que, a nosso ver, o autor procura cumprir com o seu texto. 
Pois que, nessa exumação, junto com esses trapos de vida, o que vem à tona, como numa autópsia, é a carga genética mesma do poder absolutista francês, em nome de quem se peticiona, suplica, roga, denuncia, acorre-se, na busca de proteção ou de  benesses, perpetrando-se contra outrem acusações sobre as quais não se sabe, além do mais, se verdadeiras ou falsas.
Por meio de sua compilação dos homens infames, não é o poder que Michel Foucault mira, e sim os “modos de objetivação” que transformam os seres humanos “em sujeitos”, este sim, o verdadeiro tema dos seus escritos, que, como o próprio autor define, são “fragmentos de filosofia no canteiro da história”.
Para Foucault, en su forma moderna, el poder se ejerce cada vez más
en un dominio que no es el de la ley, sino el de la norma, y, por otro lado, no simplemente reprime una individualidad o una naturaleza ya dada, sino que positivamente la constituye, la forma.

 (CASTRO, Edgardo)

Essa constituição, essa formatação, por assim dizer, da individualidade, do modo de vida, encontra sua expressão primeira no confessionário, espaço privilegiado de exercício do “poder pastoral” do cristianismo, ainda na Idade Média.
A confissão, assim, desenvolve-se como “ritual de discurso” e como “relação de poder” que irá se fortalecer, avançando por sobre os diversos espaços da vida social e na direção da individualização, vindo a ser o berço do que, séculos mais tarde, o autor define como uma “sociedade do controle” nos tempos modernos.
Nesse trajeto, a ilegalidade - aqui representa por esses fragmentos de uma “lenda dos homens obscuros”- não será “acidente ou uma imperfeição”. “
Es un elemento absolutamente positivo del funcionamiento social, cuya función está prevista en la estrategia general de la sociedad.”
O agenciamento desse controle deixará de ser religioso - “a tomada de poder sobre o dia-a-dia” que o cristianismo organizara em torno da confissão - para tornar-se administrativo. É assim que a “voz única, instantânea e sem rastro da confissão penitencial” será substituída por uma enorme “massa documental”.
A lettre de cachet com ordens de prisão, tida como a vontade expressa e particular do rei de fazer encarcerar um de seus súditos, fora das vias da justiça regular, não é senão a resposta a essa demanda vinda de baixo (tradução nossa).
- FOUCAULT, 2003, P.20
A rede carcerária, seus sistemas de vigilância e observação, “panópticos”, passam a formar o poder normalizador da sociedade sobre o corpo (grifo nosso).
E o que o autor quer nos revelar é que a cadeia (perdão pelo trocadilho) vigilância-repressão-punição não se sustenta sem o elo da delação a lhes unificar. Assim, é deveras revelador observar como que a família aparece como sujeito atuante, protagonista mesmo, nessa inserção do indivíduo nos dispositivos disciplinadores.
Eis aqui uma base, uma perspectiva, uma “visada” (como talvez prefira o o Professor Estellita) que nos permite começar a entender a microfísica do poder em Foucault.
Em nada homérico ou grandiloqüente, esse exercício do poder, tal como revelado pelos documentos “monumentos” reunidos pelo autor, corre o risco de parecere monótono, não fossem os disparates por meio dos quais opera. Disparate, dentre outros, entre a “ordem minúscula dos problemas levantados e a enormidade do poder aplicado”.
E o que ocorre, então? Ao meter-se, todos os dias, em “tantos ódios e intrigas”, torna-se o rei detestável. “Como dizia o duque de Chaulieu, eu acho que, nas Mémoires de deusx jeunes mariées: ao cortar a cabeça do rei, a Revolução Francesa decapitou todos os pais de família.”
Eis que estamos inseridos, atolados, lambuzados, (toda a sociedade) atravessada por uma formação discursiva, que assim é definida por Focault  - “un conjunto de reglas anónimas, históricas, siempre determinadas en el tiempo y en el espacio, que han definido en una época dada, y para un área social, económica, geográfica o lingüística dada, las condiciones de ejercicio de la función enunciativa”.
Assim, o Ocidente vê nascer, a partir do século XVIII, “toda uma fábula da vida obscura”, ao qual emprestou (uma maquinaria de) “palavras, torneios de  frases e rituais de linguagem à massa anônima de pessoas”.
El tipo de análisis que yo practico no se ocupa del problema del sujeto hablante, sino que examina las diferentes maneras en las que el discurso cumple una función dentro de un sistema estratégico donde el poder está implicado y por el cual el poder funciona. El poder no está, pues, afuera del discurso. El poder no es ni la fuente ni el origen del discurso. El poder es algo que funciona a través del discurso, porque el discurso es, él mismo, un elemento en un dispositivo estratégico de relaciones de poder” (grifos nossos).
(CASTRO, Edgardo)
Prenuncia Foucault: “dia virá” em que o poder que se exercerá no nível da vida não mais será a de um monarca. “Será constituído de uma rede fina, diferenciada, contínua, na qual se alternam instituições diversas”.
E não mais o grotesco relato de um escriba que empresta disparates “monótonos”, tragicômicos pode-se até dizer, ao sofrimento dos anônimos. Não mais.
Palavras do autor: “O banal se analisará segundo a grelha eficaz mas cinza” da administração, do jornalismo e da ciência; exceto se for buscar seus esplendores um pouco mais longe disso, na literatura.”
Segundo Foucault, já neste ponto, as relações do discurso, do poder, da vida cotidiana e da verdade se enlaçaram sob um novo modo em que também a literatura se encontrava engajada. “O infame torna-se, portanto, imperativo de um novo dispositivo, ética imanente ao discurso literário do Ocidente.”
A literatura atua para pôr o cotidiano “em discurso”. Volta-se para o escândalo, a transgressão, o inconfessável, os segredos. “A fascinação que a psicanálise e a literatura exercem uma sobre a outra, há anos, é, neste ponto, significativa.”
E o que pensa Foucault sobre a literatura, nesse particular? “Mas não se deve esquecer que essa posição singular da literatura não é senão o efeito de certo dispositivo de poder que atravessa no Ocidente a economia dos discursos e as estratégias do verdadeiro (grifos nossos)”
E é por ver a psicanálise como uma “arqueologia da confissão” que Foucault entenderá as suas técnicas em comunhão com o sistema de poder. “La metáfora de la liberación no parece apropiada para definir la práctica psicoanalítica.”
Michel Foucault afirma ser “demasiado dizer” – portanto, desnecessário dizer - que a compilação exumada seja vista como notícias. “Nem ‘quase’ nem ‘subliteratura’, não é sequer o esboço de um gênero; é, na desordem, no barulho e na dor, o trabalho do poder sobre as vidas, e o discurso que dele nasce.”
Transportados estamos para a ambiência da sociedade ocidental moderna. À presença da mídia (na forma de notícias e todo tipo de prosas urbanas novelescas), de um poder que não se consegue tangenciar, sequer apalpar: volátil, eletromagnético, digital, absolutamente fluido, presente em tudo, em todos, por todos.
Pura imanência do poder cotidiano. Poder corporificado. Micropoder. Tal qual a cabeça de Luis XVI, à lâmina da guilhotina revolucionária, nossas cabeças foram atravessadas pelo discurso do poder, sangramos todos... E continuamos a fazer nossas petições, nossas delações, nosso controle sobre a transgressão. A exercer nossa vigilância diária - no fundo, sobre nós mesmos.   

O que é uma literatura menor?


PPGICS - Turma 2011
Fundamentos Teóricos da Saúde, Ciência e Tecnologia - 1º semestre 2011
Professores:
Dra.Maria Cristina Guimarães
Dr. Carlos Eduardo Estellita Lins
Dr. José Carvalho Noronha
Aluno: César Augusto Luz
Resenha Acadêmica Crítica 2 – 25 de abril de 2011
O QUE É UMA LITERATURA MENOR?
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é uma literatura menor? In: ________. Kafka: para uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1978. cap. 3., p. 25-42.
Resumo: Nesse texto, Deleuze e Guattari* nos mostram como a obra de Kafka faz a opção por uma literatura menor, por uma desterritorialização cultural praticada numa língua maior. Mergulham no universo kafkiano para nos revelar como essa desterritorialização é realizada. O conceito de devenir pode ser observado em pleno acontecimento.

A impossibilidade do intercâmbio tranqüilo teve uma outra conseqüência na verdade muito natural: desaprendi a falar.
- (KAFKA, Franz. Carta ao Pai. São Paulo: BRASILIENSE, 1986, P.22)
“There is no surer way of evading the world than through art, and there is no surer way of connecting with the world than through art.” Goethe[1]
Transl. Nicholas Walker from Goethe Werke quoted in Art and Theory 1815-1900 p.75

(*)  Esse texto foi produzido com base na leitura dos Capítulos 1 e 3 do citado livro. 

Kafka, oprimido, cabisbaixo, sem voz, sem força.
“Entre nós não houve propriamente uma luta; fui logo liquidado; o que restou foi fuga, amargura, luto, luta interior.” (KAFKA, Franz. Carta ao Pai. São Paulo: BRASILIENSE, 1986, P.39)
 Falou pelos insetos, falou pelos cães, pelos ratos. Falou pela minoria. Falou pela voz de quem não tem voz. Como ele.
Nasceu e viveu a maior parte da sua vida em Praga, capital da Boêmia, então pertencente ao Império Austro-Húngaro, sob influência de três culturas: judia, tcheca e alemã.
  E falou em língua culta, sem ser culto. Áspero, rude, enigmático. “Até as deformações em Kafka são precisas”, segundo Theodor Adorno.
Mas, para prosseguirmos, precisamos nos deter no “enigma” que Deleuze e Guatari nos colocam no Capítulo 3, que é o texto para o qual se pediu essa resenha. No entanto, tivemos que ir além, pois apenas com a sua leitura não pudemos elucidar o enigma. Com a busca dos capítulos anteriores, vamos entender o que nos dizem.
Em vários textos de Kafka, aparece a cabeça-inclinada (forma de conteúdo), sempre associada a algo pesado, soturno, esmagador, ao desejo reprimido, infância, territorialidade ou reterritorialização e a uma forma de expressão que é o retrato-foto, a primeira forma como ela se revela em “O Castelo” (grifos nossos).  
Já a cabeça-erguida (forma de conteúdo) lança-se para a busca, a retomada do desejo que se ergue, se abre a novas conexões, desterritorialização e uma forma de expressão que é o som musical (grifos nossos).
 “Como entrar na obra de Kafka? Trata-se de um rizoma, de uma toca.”
O Castelo apresenta múltiplas entradas, a Toca pode enganar e, ao desavisado, parecer que tem apenas uma entrada e saída. Decidem os autores entrar por qualquer extremidade, pois “nenhuma vale mais do que a outra”. Nenhuma é mais privilegiada, mesmo que seja “um beco sem saída, um sifão”.

Procuraremos apenas com quais outros pontos se conecta aquele pelo qual se entra, por quais cruzamentos e galerias se passa para conectar dois pontos, qual é o mapa do rizoma, e como imediatamente se modificaria se entrássemos por um outro ponto.”
- Deleuze, G; Guattari, F, P. 07
A solução do enigma começa por entender que a cabeça-inclinada está associada à música:
“É curioso como, em Kafka, a intrusão do som frequentemente se faz em conexão com o movimento de levantar ou erguer a cabeça: Josefina, a ratazana; os pequenos cães músicos (...)
- Deleuze, G; Guattari, F, P. 09
Até aí, há, entre as duas posições, uma bipolaridade, uma dicotomia entre as formas de conteúdo e suas respectivas formas de expressão. Mas, como nos mostram  Deleuze e Guattari, Kafka é muito mais que antinomias.
Irá surpreender-nos que a música que não se realize. É, pois, uma sonoridade frustrada, calada, sufocada, uma forma de expressão que não condiz com a sua forma de conteúdo. (grifo nosso)
É essa dissonância, essa descontinuidade, essa ruptura, que irá sustentar a tese das “entradas múltiplas” que impede a introdução do “inimigo”, a saber, “o significante” e as tentativas para interpretar uma obra que se quer apenas experimentação.

O que interessa em Kafka é uma pura matéria sonora intensa, sempre em relação com a sua abolição, som musical desterritorializado, grito que escapa à significação, à composição, ao canto, à fala, sonoridade em ruptura para desprender-se de uma cadeia ainda muito significante. No som, conta apenas a intensidade, geralmente monótona, sempre assignificante: assim, no Processo, o grito em um único tom do comissário que se faz fustigar “não parecia vir de um homem, mas de uma máquina de sofrer.
(...)
Aparições múltiplas do grito em Kafka: gritar para se ouvir gritar – o grito de morte do homem na caixa fechada. “Bruscamente, lancei um grito. Somente para ouvir um grito ao qual nada responde, tirando-lhe a força, e que, sem contrapartida, se eleva, então, sem fim, mesmo depois de ter-se calado... (Contemplações)
A partir desses esclarecimentos, podemos avançar com maior desenvoltura e um trecho do texto sintetizará bem esse conceito singular que dá nome ao ensaio: “As três características da literatura menor são de desterritorialização da língua, a ramificação do individual no imediato-político, agenciamento coletivo de enunciação.”
Já trabalhamos a idéia de que a desterritorialização ocorre por meio de uma descontinuidade simbólica-significativa. Uma busca de desestabilizar conteúdo e forma e, assim, refundar o seu lugar de pertenciamento. Uma diferença que não se faz entre, mas no mesmo, a partir do mesmo.
A “ramificação do individual no imediato-político”. Pelo seu espaço exíguo, a literatura menor faz com que cada caso individual seja imediatamente ligado à política. Levado “ao microscópio”, ele revela outras histórias que se ali se desenrolam.
E é em nome do agenciamento coletivo que o escritor da literatura menor irá renunciar a ser o sujeito da enunciação, como Josefina, que renuncia ao exercício individual do seu canto. Outro exemplo é o uso da letra “K”, que, segundo os autores, designa um agenciamento tanto mais maquínico do coletivo.
Mas toda minoria que faz uso de uma língua maior está praticando uma literatura menor? Os autores defendem que não e mostra como exemplo a ramificação que separa o projeto de Kafka, de levar ao máximo a desterritorialização, pela pobreza, pela crueza; e uma outra, de busca de reterritorialização, representada por outros autores, incluído aí o seu amigo Max Brod, que irão buscar um “enriquecimento artificial” do alemão, por meio do uso de simbolismos, onirismo, esoterismo e ocultação da signficação.
Não, Kafka vai buscar a desterritorialização por meio de disjunções. Disjunção entre comer e falar, por exemplo. Do som musical que não se realiza na sua plenitude e que sobram como sentido incompleto.
É o próprio Kafka, citado pelos autores, quem sentencia. “As metáforas são uma das coisas que me fazem perder a esperança na literatura.” E, nele, “a metamorfose é o contrário da metáfora”. Não há mais sentido próprio e nem sentido figurado.
Não se trata deum semelhança entre o comportamento de um animal e o do homem, e menos ainda de um jogo de palavras. Não há mais nem homem nem animal, já que cada um desterritorializa o outro, numa conjunção de fluxos, num continuum reversível de intensidades. Trata-se de um devenir (...)
- Deleuze, G; Guattari, F, P. 34
Por fim, a atualização da obra de Kafka que faz por meio da pergunta: “Quantas pessoas hoje vivem em uma língua que não é a delas.” Ou que não a conhecem, ou conhecem mal.
Lembro-me dos Emirados Árabes, que perde a sua língua para o inglês, que invade todos os espaços, como podemos ver em ensaios recentes e comprovei em uma minha viagem. Já não são árabes e nem ingleses ou norte-americanos.
Podemos dizer que precisamos de mais Kafkas, pois há muito “devenires” por ocorrer?