quinta-feira, 5 de maio de 2011

A vida dos homens infames


PPGICS - Turma 2011
Fundamentos Teóricos da Saúde, Ciência e Tecnologia - 1º semestre 2011
Professores:
Dra.Maria Cristina Guimarães
Dr. Carlos Eduardo Estellita Lins
Dr. José Carvalho Noronha
Aluno: César Augusto Luz
Resenha Acadêmica Crítica 1 – 25 de abril de 2011
A vida dos homens infames
FOUCAULT, M. (2003) A vida dos homens infames. In: ______. Estratégia, poder-saber. Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p.203-222.
Resumo: A obra de Michel Foucault* discute, a partir da compilação de pequenas petições, exumadas dos arquivos do internamento do Hospital Geral e da Bastilha, relativos ao período que compreende os anos de 1660 a 1760, uma espécie peculiar de formação discursiva que se articula em torno dos mecanismos da disciplina, do castigo, da prisão e da repressão e que operam na França absolutista dos séculos XVII e XVIII. Os documentos, tomados como monumentos, revelam, em si, como os sujeitos produzem e reproduzem discursos do poder, eles próprios integrantes de dispositivos estratégicos mais amplos que se situam na conformação histórica da sociedade burguesa, no leito de um fluxo que vem das práticas confessionais cristãs e deságua nas relações da sociedade moderna, apontando, ainda, conexões entre a literatura e a psicanálise, que dialogam fortemente com essa tradição discursiva.

(*) Consideramos como premissa metodológica básica para elaborarmos essa resenha, conhecermos o pensamento de Michel Foucault, mesmo que de forma rudimentar. Após a leitura do texto do autor francês, fomos buscar no Vocabulário de Edgardo Castro uma seleção de conceitos que nos apoiasse como um “mapa” e, ao mesmo tempo, uma “bússola”. Acreditamos que a nossa proposta metodológica, por mais elementar que seja, brindou-nos com possibilidades muito ricas, pois que situou o texto em foco numa linha histórica, dialogando com conceitos-chave para a compreensão das idéias do autor.

Propus-me a saber por que, de repente, tinha sido tão importante em uma sociedade como a nossa que um monge escandaloso ou agiota extravagante e inconseqüente fossem “sufocados” (como se sufoca um grito, um fogo ou um animal); procurei saber a razão pela qual se quis impedir com tanto zelo os pobres espíritos de passearem pelas estradas desconhecidas.
- FOUCAULT, 2003, P.13
A arqueologia de Michel Foucault, entendida como a “história das condições históricas da condição de saber” (CASTRO, Edgardo, El vocabulário de Michel Foucault. Um recorrido alfabético por sus temas, conceptos y autores) depara-se com acontecimentos discursivos que irão, efetivamente, desnudar a experiência “da ordem e dos seus modos de ser”. Documentos, “monumentos” em si, que não serão tratados como “signos de outro”, senão, como reveladores mesmo de uma prática específica.
Tal arqueologia, vigorosa e seminal, atuará perante o “arquivo”, tomado como a “lei do que pode ser dito, um sistema que rege a aparição dos enunciados como acontecimentos singulares” (idem). E são essas “experiências-relâmpago”, “poemas-vida” que nos permitirão ver e quase tocar os mortos, no seu encontro “instantâneo” com o poder.  Enfim, infames, desordeiros, vilipendiados de toda (des)ordem serão os protagonistas dessa exumação dos “sofrimentos, malvadezas, ciúmes e vociferações”. 
“Essas vidas, por que não ir escutá-las, lá onde, por elas próprias, elas falam?”
O ponto mais intenso das vidas, aquele em que concentra sua energia, é bem ali onde elas se chocam com o poder, se debatem com ele, tentam utilizar suas forças ou escapar de suas armadilhas.
- FOUCAULT, 2003, P.16
E ao selecioná-las, exumá-las do túmulo silencioso e frio em que se achavam, Focault utiliza alguns critérios bem simples, renunciando a análises ou “rudimentos” de explicação: que fossem curtas, obscuras e desventuradas, de personagens reais, que nos despertassem beleza e terror, por meio do relato de suas desgraças, de sua raiva ou de incerta loucura. Que mantivessem, ainda, o maior número possível de relações com a realidade; “não somente que a ela se referissem, mas que nela operassem”(grifo nosso).
Mesmo que, de fato, despretensiosa, tais critérios mostrar-se-ão, como poderemos ver, absolutamente fundamentais para os objetivos que, a nosso ver, o autor procura cumprir com o seu texto. 
Pois que, nessa exumação, junto com esses trapos de vida, o que vem à tona, como numa autópsia, é a carga genética mesma do poder absolutista francês, em nome de quem se peticiona, suplica, roga, denuncia, acorre-se, na busca de proteção ou de  benesses, perpetrando-se contra outrem acusações sobre as quais não se sabe, além do mais, se verdadeiras ou falsas.
Por meio de sua compilação dos homens infames, não é o poder que Michel Foucault mira, e sim os “modos de objetivação” que transformam os seres humanos “em sujeitos”, este sim, o verdadeiro tema dos seus escritos, que, como o próprio autor define, são “fragmentos de filosofia no canteiro da história”.
Para Foucault, en su forma moderna, el poder se ejerce cada vez más
en un dominio que no es el de la ley, sino el de la norma, y, por otro lado, no simplemente reprime una individualidad o una naturaleza ya dada, sino que positivamente la constituye, la forma.

 (CASTRO, Edgardo)

Essa constituição, essa formatação, por assim dizer, da individualidade, do modo de vida, encontra sua expressão primeira no confessionário, espaço privilegiado de exercício do “poder pastoral” do cristianismo, ainda na Idade Média.
A confissão, assim, desenvolve-se como “ritual de discurso” e como “relação de poder” que irá se fortalecer, avançando por sobre os diversos espaços da vida social e na direção da individualização, vindo a ser o berço do que, séculos mais tarde, o autor define como uma “sociedade do controle” nos tempos modernos.
Nesse trajeto, a ilegalidade - aqui representa por esses fragmentos de uma “lenda dos homens obscuros”- não será “acidente ou uma imperfeição”. “
Es un elemento absolutamente positivo del funcionamiento social, cuya función está prevista en la estrategia general de la sociedad.”
O agenciamento desse controle deixará de ser religioso - “a tomada de poder sobre o dia-a-dia” que o cristianismo organizara em torno da confissão - para tornar-se administrativo. É assim que a “voz única, instantânea e sem rastro da confissão penitencial” será substituída por uma enorme “massa documental”.
A lettre de cachet com ordens de prisão, tida como a vontade expressa e particular do rei de fazer encarcerar um de seus súditos, fora das vias da justiça regular, não é senão a resposta a essa demanda vinda de baixo (tradução nossa).
- FOUCAULT, 2003, P.20
A rede carcerária, seus sistemas de vigilância e observação, “panópticos”, passam a formar o poder normalizador da sociedade sobre o corpo (grifo nosso).
E o que o autor quer nos revelar é que a cadeia (perdão pelo trocadilho) vigilância-repressão-punição não se sustenta sem o elo da delação a lhes unificar. Assim, é deveras revelador observar como que a família aparece como sujeito atuante, protagonista mesmo, nessa inserção do indivíduo nos dispositivos disciplinadores.
Eis aqui uma base, uma perspectiva, uma “visada” (como talvez prefira o o Professor Estellita) que nos permite começar a entender a microfísica do poder em Foucault.
Em nada homérico ou grandiloqüente, esse exercício do poder, tal como revelado pelos documentos “monumentos” reunidos pelo autor, corre o risco de parecere monótono, não fossem os disparates por meio dos quais opera. Disparate, dentre outros, entre a “ordem minúscula dos problemas levantados e a enormidade do poder aplicado”.
E o que ocorre, então? Ao meter-se, todos os dias, em “tantos ódios e intrigas”, torna-se o rei detestável. “Como dizia o duque de Chaulieu, eu acho que, nas Mémoires de deusx jeunes mariées: ao cortar a cabeça do rei, a Revolução Francesa decapitou todos os pais de família.”
Eis que estamos inseridos, atolados, lambuzados, (toda a sociedade) atravessada por uma formação discursiva, que assim é definida por Focault  - “un conjunto de reglas anónimas, históricas, siempre determinadas en el tiempo y en el espacio, que han definido en una época dada, y para un área social, económica, geográfica o lingüística dada, las condiciones de ejercicio de la función enunciativa”.
Assim, o Ocidente vê nascer, a partir do século XVIII, “toda uma fábula da vida obscura”, ao qual emprestou (uma maquinaria de) “palavras, torneios de  frases e rituais de linguagem à massa anônima de pessoas”.
El tipo de análisis que yo practico no se ocupa del problema del sujeto hablante, sino que examina las diferentes maneras en las que el discurso cumple una función dentro de un sistema estratégico donde el poder está implicado y por el cual el poder funciona. El poder no está, pues, afuera del discurso. El poder no es ni la fuente ni el origen del discurso. El poder es algo que funciona a través del discurso, porque el discurso es, él mismo, un elemento en un dispositivo estratégico de relaciones de poder” (grifos nossos).
(CASTRO, Edgardo)
Prenuncia Foucault: “dia virá” em que o poder que se exercerá no nível da vida não mais será a de um monarca. “Será constituído de uma rede fina, diferenciada, contínua, na qual se alternam instituições diversas”.
E não mais o grotesco relato de um escriba que empresta disparates “monótonos”, tragicômicos pode-se até dizer, ao sofrimento dos anônimos. Não mais.
Palavras do autor: “O banal se analisará segundo a grelha eficaz mas cinza” da administração, do jornalismo e da ciência; exceto se for buscar seus esplendores um pouco mais longe disso, na literatura.”
Segundo Foucault, já neste ponto, as relações do discurso, do poder, da vida cotidiana e da verdade se enlaçaram sob um novo modo em que também a literatura se encontrava engajada. “O infame torna-se, portanto, imperativo de um novo dispositivo, ética imanente ao discurso literário do Ocidente.”
A literatura atua para pôr o cotidiano “em discurso”. Volta-se para o escândalo, a transgressão, o inconfessável, os segredos. “A fascinação que a psicanálise e a literatura exercem uma sobre a outra, há anos, é, neste ponto, significativa.”
E o que pensa Foucault sobre a literatura, nesse particular? “Mas não se deve esquecer que essa posição singular da literatura não é senão o efeito de certo dispositivo de poder que atravessa no Ocidente a economia dos discursos e as estratégias do verdadeiro (grifos nossos)”
E é por ver a psicanálise como uma “arqueologia da confissão” que Foucault entenderá as suas técnicas em comunhão com o sistema de poder. “La metáfora de la liberación no parece apropiada para definir la práctica psicoanalítica.”
Michel Foucault afirma ser “demasiado dizer” – portanto, desnecessário dizer - que a compilação exumada seja vista como notícias. “Nem ‘quase’ nem ‘subliteratura’, não é sequer o esboço de um gênero; é, na desordem, no barulho e na dor, o trabalho do poder sobre as vidas, e o discurso que dele nasce.”
Transportados estamos para a ambiência da sociedade ocidental moderna. À presença da mídia (na forma de notícias e todo tipo de prosas urbanas novelescas), de um poder que não se consegue tangenciar, sequer apalpar: volátil, eletromagnético, digital, absolutamente fluido, presente em tudo, em todos, por todos.
Pura imanência do poder cotidiano. Poder corporificado. Micropoder. Tal qual a cabeça de Luis XVI, à lâmina da guilhotina revolucionária, nossas cabeças foram atravessadas pelo discurso do poder, sangramos todos... E continuamos a fazer nossas petições, nossas delações, nosso controle sobre a transgressão. A exercer nossa vigilância diária - no fundo, sobre nós mesmos.   

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