quinta-feira, 5 de maio de 2011

O que é uma literatura menor?


PPGICS - Turma 2011
Fundamentos Teóricos da Saúde, Ciência e Tecnologia - 1º semestre 2011
Professores:
Dra.Maria Cristina Guimarães
Dr. Carlos Eduardo Estellita Lins
Dr. José Carvalho Noronha
Aluno: César Augusto Luz
Resenha Acadêmica Crítica 2 – 25 de abril de 2011
O QUE É UMA LITERATURA MENOR?
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é uma literatura menor? In: ________. Kafka: para uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1978. cap. 3., p. 25-42.
Resumo: Nesse texto, Deleuze e Guattari* nos mostram como a obra de Kafka faz a opção por uma literatura menor, por uma desterritorialização cultural praticada numa língua maior. Mergulham no universo kafkiano para nos revelar como essa desterritorialização é realizada. O conceito de devenir pode ser observado em pleno acontecimento.

A impossibilidade do intercâmbio tranqüilo teve uma outra conseqüência na verdade muito natural: desaprendi a falar.
- (KAFKA, Franz. Carta ao Pai. São Paulo: BRASILIENSE, 1986, P.22)
“There is no surer way of evading the world than through art, and there is no surer way of connecting with the world than through art.” Goethe[1]
Transl. Nicholas Walker from Goethe Werke quoted in Art and Theory 1815-1900 p.75

(*)  Esse texto foi produzido com base na leitura dos Capítulos 1 e 3 do citado livro. 

Kafka, oprimido, cabisbaixo, sem voz, sem força.
“Entre nós não houve propriamente uma luta; fui logo liquidado; o que restou foi fuga, amargura, luto, luta interior.” (KAFKA, Franz. Carta ao Pai. São Paulo: BRASILIENSE, 1986, P.39)
 Falou pelos insetos, falou pelos cães, pelos ratos. Falou pela minoria. Falou pela voz de quem não tem voz. Como ele.
Nasceu e viveu a maior parte da sua vida em Praga, capital da Boêmia, então pertencente ao Império Austro-Húngaro, sob influência de três culturas: judia, tcheca e alemã.
  E falou em língua culta, sem ser culto. Áspero, rude, enigmático. “Até as deformações em Kafka são precisas”, segundo Theodor Adorno.
Mas, para prosseguirmos, precisamos nos deter no “enigma” que Deleuze e Guatari nos colocam no Capítulo 3, que é o texto para o qual se pediu essa resenha. No entanto, tivemos que ir além, pois apenas com a sua leitura não pudemos elucidar o enigma. Com a busca dos capítulos anteriores, vamos entender o que nos dizem.
Em vários textos de Kafka, aparece a cabeça-inclinada (forma de conteúdo), sempre associada a algo pesado, soturno, esmagador, ao desejo reprimido, infância, territorialidade ou reterritorialização e a uma forma de expressão que é o retrato-foto, a primeira forma como ela se revela em “O Castelo” (grifos nossos).  
Já a cabeça-erguida (forma de conteúdo) lança-se para a busca, a retomada do desejo que se ergue, se abre a novas conexões, desterritorialização e uma forma de expressão que é o som musical (grifos nossos).
 “Como entrar na obra de Kafka? Trata-se de um rizoma, de uma toca.”
O Castelo apresenta múltiplas entradas, a Toca pode enganar e, ao desavisado, parecer que tem apenas uma entrada e saída. Decidem os autores entrar por qualquer extremidade, pois “nenhuma vale mais do que a outra”. Nenhuma é mais privilegiada, mesmo que seja “um beco sem saída, um sifão”.

Procuraremos apenas com quais outros pontos se conecta aquele pelo qual se entra, por quais cruzamentos e galerias se passa para conectar dois pontos, qual é o mapa do rizoma, e como imediatamente se modificaria se entrássemos por um outro ponto.”
- Deleuze, G; Guattari, F, P. 07
A solução do enigma começa por entender que a cabeça-inclinada está associada à música:
“É curioso como, em Kafka, a intrusão do som frequentemente se faz em conexão com o movimento de levantar ou erguer a cabeça: Josefina, a ratazana; os pequenos cães músicos (...)
- Deleuze, G; Guattari, F, P. 09
Até aí, há, entre as duas posições, uma bipolaridade, uma dicotomia entre as formas de conteúdo e suas respectivas formas de expressão. Mas, como nos mostram  Deleuze e Guattari, Kafka é muito mais que antinomias.
Irá surpreender-nos que a música que não se realize. É, pois, uma sonoridade frustrada, calada, sufocada, uma forma de expressão que não condiz com a sua forma de conteúdo. (grifo nosso)
É essa dissonância, essa descontinuidade, essa ruptura, que irá sustentar a tese das “entradas múltiplas” que impede a introdução do “inimigo”, a saber, “o significante” e as tentativas para interpretar uma obra que se quer apenas experimentação.

O que interessa em Kafka é uma pura matéria sonora intensa, sempre em relação com a sua abolição, som musical desterritorializado, grito que escapa à significação, à composição, ao canto, à fala, sonoridade em ruptura para desprender-se de uma cadeia ainda muito significante. No som, conta apenas a intensidade, geralmente monótona, sempre assignificante: assim, no Processo, o grito em um único tom do comissário que se faz fustigar “não parecia vir de um homem, mas de uma máquina de sofrer.
(...)
Aparições múltiplas do grito em Kafka: gritar para se ouvir gritar – o grito de morte do homem na caixa fechada. “Bruscamente, lancei um grito. Somente para ouvir um grito ao qual nada responde, tirando-lhe a força, e que, sem contrapartida, se eleva, então, sem fim, mesmo depois de ter-se calado... (Contemplações)
A partir desses esclarecimentos, podemos avançar com maior desenvoltura e um trecho do texto sintetizará bem esse conceito singular que dá nome ao ensaio: “As três características da literatura menor são de desterritorialização da língua, a ramificação do individual no imediato-político, agenciamento coletivo de enunciação.”
Já trabalhamos a idéia de que a desterritorialização ocorre por meio de uma descontinuidade simbólica-significativa. Uma busca de desestabilizar conteúdo e forma e, assim, refundar o seu lugar de pertenciamento. Uma diferença que não se faz entre, mas no mesmo, a partir do mesmo.
A “ramificação do individual no imediato-político”. Pelo seu espaço exíguo, a literatura menor faz com que cada caso individual seja imediatamente ligado à política. Levado “ao microscópio”, ele revela outras histórias que se ali se desenrolam.
E é em nome do agenciamento coletivo que o escritor da literatura menor irá renunciar a ser o sujeito da enunciação, como Josefina, que renuncia ao exercício individual do seu canto. Outro exemplo é o uso da letra “K”, que, segundo os autores, designa um agenciamento tanto mais maquínico do coletivo.
Mas toda minoria que faz uso de uma língua maior está praticando uma literatura menor? Os autores defendem que não e mostra como exemplo a ramificação que separa o projeto de Kafka, de levar ao máximo a desterritorialização, pela pobreza, pela crueza; e uma outra, de busca de reterritorialização, representada por outros autores, incluído aí o seu amigo Max Brod, que irão buscar um “enriquecimento artificial” do alemão, por meio do uso de simbolismos, onirismo, esoterismo e ocultação da signficação.
Não, Kafka vai buscar a desterritorialização por meio de disjunções. Disjunção entre comer e falar, por exemplo. Do som musical que não se realiza na sua plenitude e que sobram como sentido incompleto.
É o próprio Kafka, citado pelos autores, quem sentencia. “As metáforas são uma das coisas que me fazem perder a esperança na literatura.” E, nele, “a metamorfose é o contrário da metáfora”. Não há mais sentido próprio e nem sentido figurado.
Não se trata deum semelhança entre o comportamento de um animal e o do homem, e menos ainda de um jogo de palavras. Não há mais nem homem nem animal, já que cada um desterritorializa o outro, numa conjunção de fluxos, num continuum reversível de intensidades. Trata-se de um devenir (...)
- Deleuze, G; Guattari, F, P. 34
Por fim, a atualização da obra de Kafka que faz por meio da pergunta: “Quantas pessoas hoje vivem em uma língua que não é a delas.” Ou que não a conhecem, ou conhecem mal.
Lembro-me dos Emirados Árabes, que perde a sua língua para o inglês, que invade todos os espaços, como podemos ver em ensaios recentes e comprovei em uma minha viagem. Já não são árabes e nem ingleses ou norte-americanos.
Podemos dizer que precisamos de mais Kafkas, pois há muito “devenires” por ocorrer?





3 comentários:

  1. Interessante esse texto, estava em busca de algo desse nível sobre o olhar de Deleuze e Guattari para Kafka, encontrei. Parabéns!

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  2. Estava precisando de um texto como o seu, para poder introduzir minha leitura e me animar a ler Deleuze e Guatarri, fez parecer menos complicado a leitura da sua resenha, agora vou procurar os originais. Grato.

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  3. Eu já li muitas vezes este livro de D&G, e gostei muito desta exposição! Cada capítulo do livro é muito denso e o livro é ilusoriamente pequeno...
    Mas esta introdução é ótima!
    Gostaria de acrescentar o nosso momento atual (junho de 2018), em que a ideia de "povo" se torna diferente, talvez...

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